Enem resistiu a Bolsonaro, avaliam servidores do Inep
Servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), órgão do governo que realiza o Enem, têm comemorado nos bastidores a amplitude de temas abordados na prova de 2022. Para eles, o exame resistiu às investidas ideológicas do governo Jair Bolsonaro (PL).
Sob condição de anonimato, servidores do Inep disseram à Folha que ter conseguido pautar na prova temas importantes para o debate social é demonstração de força da área técnica do órgão, apesar de ataques do atual governo.
A redação do Enem abordou temática em que Bolsonaro é fortemente criticado por sua omissão e ataques, inclusive internacionalmente. O presidente já comparou quilombolas a animais e tem um histórico de críticas a demarcações de terras indígenas –seu governo não avançou nem um centímetro nesse desafio.
Desde 1998, quando o Enem foi criado, é tradicional a abordagem de temas de direitos humanos na redação. A partir de 2009 o Enem passou a ser usado como vestibular por praticamente todas as universidades federais.
Por questões de segurança, o ministro da Educação não viu o tema da redação antes do início da prova –foi o ministro, Victor Godoy Veiga, quem o divulgou publicamente após o início da prova. Bolsonaro também não teve acesso ao conteúdo desde que assumiu o governo, segundo relatos.
O Inep passou por forte pressão ideológica no governo Bolsonaro, inclusive com movimentos para censurar conteúdos no Enem. O órgão já está em seu quinto presidente neste governo.
Depois de uma sequência de pessoas distantes do debate educacional e de avaliação no comando do instituto, o Inep tem desde julho deste ano um dos servidores mais respeitados em seu comando: Carlos Moreno. A chegada de Moreno foi comemorada internamente e, para servidores, sua atuação foi importante para respaldar a realização da prova deste ano.
Funcionários relatam que a condução de Moreno no Inep é à altura de um novo governo, distante dos arroubos autoritários que marcaram a atual gestão.
Desde 2019 houve tentativas de interferir no conteúdo da prova para agradar o presidente. Uma série de questões chegou a ser apartada por motivos ideológicos no início da gestão Bolsonaro.
Perguntas sobre ditadura militar (1964-1985), por exemplo, não caem na prova desde 2019 –o que nunca tinha ocorrido até então. No Enem 2022, essa lacuna se manteve.
No ano passado, o presidente chegou a pedir ao então ministro da Educação Milton Ribeiro que o exame não falasse em golpe de 1964, mas em revolução, visão rechaçada por historiadores.
Também houve tentativa de criar uma espécie de tribunal ideológico para censurar determinados temas. O governo recuou da ideia de criar essa comissão permanente após reportagem da Folha revelar o plano.
Uma interferência maior no Enem não ocorreu muito por causa das questões técnicas e pedagógicas que rodeiam a elaboração das questões. Todos os itens devem calibrados em níveis de dificuldade antes de integrar a prova, o que dificulta alterações intempestivas no conteúdo.
Mas a atuação dos servidores foi imprescindível para que o exame não mudasse no atual governo. Ao longo da gestão, os funcionários se posicionaram contra nomeações ideológicas, promoveram atos e demissões coletivas, denunciaram assédio moral e tentativas de interferência nos critérios técnicos do Enem –além de terem enfrentado processos internos.
O governo chegou a processar um servidor que teve um artigo científico barrado em uma revista do Inep porque o trabalho mostrava resultados positivos de uma política educacional do PT. No mês passado, entretanto, o TCU (Tribunal de Contas da União) entendeu que o Inep afrontou a lei ao não publicar o texto.
O estudo do servidor Alexandre André dos Santos, ex-diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, foi finalmente publicado pelo Inep na última semana.
Esse contexto de pressão colabora com a reação de alívio expressada por servidores à reportagem.
Neste domingo, o presidente da Assinep (Associação de Servidores do Inep), Alexandre Retamal, distribuiu nota em que valoriza a equipe.
“Em nome dos(as) servidores(as) do Inep, manifesto nossa especial gratidão a todos que continuam acreditando em nós e no trabalho que estamos fazendo com dedicação para realizar mais um Enem dentro da normalidade. É como temos dito: ‘só queremos poder fazer o nosso trabalho'”, afirma o texto de Retamal.
FOLHAPRESS
Foto: © Getty